O mundo prisional, à custa de se não deixar ver, é um espaço mágico: engolido o delinquente nas suas entranhas, por lá ficará a vegetar. E, como dizia um filme de há uns anos, nós por cá todos bem
Era uma vez uma terapeuta de um centro de atendimento a toxicodependentes que, nesse dia, se virou para o seu utente e lhe comunicou com satisfação: "Pronto, chegámos ao fim." Tinham terminado o seu processo clínico, a vida de heroinómano era já uma etapa do passado. A trabalhar em pleno, garantindo a subsistência da família, abstinente de drogas já há muito, parecia estar à beira de um recomeço. Mas, em vez da alegria da notícia, a terapeuta inquietou-se com o ar de desalento do seu utente. Recomeçar? Tinha acabado de saber que teria de regressar à prisão, pois chegava ao seu desfecho um processo antigo em que era arguido por um delito cometido há anos. A justiça, cumpridora, chegara ao fim do seu vagaroso caminho. A justiça é cega, já sabemos. E às vezes surda, e tantas vezes muda. A sua lentidão não é apenas um problema de tempo. Fiel ao rosário dos seus procedimentos, o circuito penal é um ritual arrastado que, em obediência a uma lógica interna, se vai afastando da lógica da vida social, esquecendo que o direito não existe para se autocumprir, mas para fazer cumprir a vida. A aplicação das normas penais tornou-se um sistema fechado. E os sistemas fechados, ensina-nos a física, gastam uma parte importante da sua energia para se manterem. No longo termo, a única obra visível é a degradação de energia e a incapacidade de realizar trabalho. A história com que abrimos não tem nada de extraordinário. Extraordinário é aquilo que ocorre raramente, que nos põe atónitos pela singularidade, pelo imprevisto, pela magnitude. E esta história é igual a um sem-fim de histórias como esta. Que consegue o direito ao fazer-se aplicar desta maneira? Impor um castigo que já perdeu o sentido, pois diluiu-se qualquer relação com o acto que visava punir? Fazê-lo sentir como injusto, devolvendo ao meio livre um indivíduo em estado de revolta - agora sim, com potencial de perigosidade? Depois do tribunal, detenhamo-nos um pouco nas prisões. Ensinaram-nos os historiadores que a prisão foi um enorme passo em frente no movimento, lento mas seguro ao longo da modernidade, da civilização dos costumes. Pelo menos dois passos de grande alcance foram dados com a sua criação: a humanização do castigo e a utilidade social da pena. O primeiro corresponde ao afastamento da barbárie pura e dura, que fazia da aplicação da pena um espectáculo público, que, torturando, mutilando e matando, assentava o castigo numa vingança sanguinária, em que o aparelho penal se revelava mais feroz do que o criminoso; o segundo passo tornava o cumprimento da pena um acto útil, que procurava regenerar e devolver o indivíduo ao meio livre em condições de ser cidadão responsável nos actos e útil à vida colectiva. A prisão inscrevia-se na nova economia política que fazia entrar a vida social nas mais-valias do Estado. Pois agora meditemos no que temos, passados duzentos anos sobre os primeiros cárceres modernos: - Taxas de encarceramento: pensávamos que a evolução da democracia reduziria a prisão a uma expressão mínima. Pelo contrário, o recurso a ela tem vindo a aumentar na maioria dos países do capitalismo avançado. A privação de liberdade revela-se incapaz de prevenir a reincidência, funciona como um socializador de actividades criminais, marca com o estigma da ex-reclusão, produz importantes efeitos colaterais nos familiares da pessoa presa. Os estudiosos do fenómeno carcerário põem em evidência a ausência de relação entre o recurso maciço à prisão e o controlo da criminalidade - em Portugal, apesar de estes índices serem moderados, temos a terceira mais alta taxa de encarceramento da Europa. Será que o próximo ministro da Justiça também vai querer construir mais estabelecimentos prisionais? - O regresso da pena corporal: é hoje comum entrar-se saudável numa prisão e sair-se doente. A prisão da modernidade privou o indivíduo de liberdade, mas preservava-o fisicamente - até porque de outro modo não poderia voltar a ser útil, devolvido que fosse ao meio livre. Hoje, muitos jovens saem com HIV, somando este estigma ao de ex-recluso. Alguns suicidam-se durante a reclusão. Este acto, que é só por si uma denúncia, é encoberto pelo silêncio oficial - as prisões são peças dum sistema onde a informação é controlada e a opacidade a regra. - A inutilidade da pena: quando um delinquente vai preso, a notícia do telejornal deixa-nos tranquilos - a polícia funciona, os tribunais condenam, a prisão defende-nos. O mundo prisional, à custa de se não deixar ver, é um espaço mágico: engolido o delinquente nas suas entranhas, por lá ficará a vegetar. E, como dizia um filme de há uns anos, nós por cá todos bem. Esta resolução mágica do problema, que pensa que os delinquentes são uma espécie de contingente que podemos ir metodicamente neutralizando, não pára para pensar no modo como produzimos anti-socialidade e nas condições em que devolveremos o tal delinquente ao meio livre. No primeiro caso, seria um exercício esclarecedor darmo-nos conta de como hoje as prisões servem sobretudo como lugar de acantonamento de indivíduos vítimas da desinserção social e dos mecanismos de segregação que a sociedade dominante produz. Um indicador esclarecedor: aumenta em flecha por toda a Europa o número de imigrantes presos. As prisões estão cheias dos frágeis, dos que não podem defender-se, dos que se limitam a sobreviver nas margens do nosso sistema social: são um instrumento de neutralização dos excluídos e uma máquina de criminalização da pobreza. Os processos movidos à criminalidade económica ou à corrupção nas altas esferas não passam de gotas no oceano. Mas a sua intensa mediatização permite manter a ideia de uma justiça justa, que não olha a quem e que é o garante da isenção, da igualdade perante a lei e da ordem.A actual mediatização da justiça, aparentando-a transparente, encobre o essencial. O Estado pode ter estabelecimentos em que os cidadãos são impunemente contagiados com hepatite e com HIV? Pode ter estabelecimentos onde jovens entram por pequenos delitos e saem carregando o peso da violação? A mesma justiça que impôs a pena estará disposta a reconhecer o Estado como culpado pelos atentados à integridade física daqueles que tem à sua guarda, condenando-o a pagar indemnizações e obrigando-o a saber gerir decentemente os estabelecimentos que cria? Agora que já quase nos calámos com a Casa Pia, vamos voltar a esquecer o abuso do recurso à prisão preventiva? Era bom que o silêncio para lá dos muros fosse uma mera frase feita. Que quer ele dizer? Que nos envergonhamos de punir? Ou que não queremos reconhecer o estado a que chegou um dispositivo cuja maneira de punir, historicamente, havia representado um modo de, sem abdicar da pena, respeitar a vida e a dignidade humanas? Porque a vida, a vida de cada um de nós, é demasiado frágil e irrepetível para que possa ser agredida, mesmo que seja só pela incúria, pelo desleixo ou pelo abandono.
Professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
um muito obrigado ao João Carmo pela dica ;)
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